A diversidade de modelos de inteligência artificial (IA) generativa – mais de 300 no mundo, atualmente – abre um amplo leque de possibilidades para que as empresas escolham e troquem de ‘máquina’, como são chamados esses robôs. Mas isso não é tão simples. Se a empresa construiu toda a sua aplicação com base em um modelo, como o ChatGPT, da OpenAI; o Google Bard; ou o Claude, da Anthropic, por exemplo, fica ‘presa’ a ele, por não ser modular. A mudança para outro modelo requer trabalho de programação.
Para resolver esse problema, a Inmetrics criou uma interface, em parceria com a Universidade de Campinas (Unicamp), em 2023, batizada de Liev. A empresa investiu R$ 8 milhões no projeto, em dois anos, e a primeira fase está concluída, com o sistema em uso.
O Laboratório de Inteligência Artificial e Inferência em Dados Complexos (Recod.ai) da Unicamp, no Instituto de Computação, atuou na fase inicial de estudos e deve prosseguir na próxima fase de desenvolvimento. Assumiu os custos de pesquisadores, alunos e estudantes de pós-doutorado (pós-docs), e recursos computacionais para treinamento de IA.
O Recod.ai Tem com 250 colaboradores no mundo, dos quais cerca de 130 nas instalações da universidade no Brasil. O investimento total do laboratório é de R$ 5 milhões a R$ 6 milhões por ano. A indústria financia três quartos do valor e as agências de fomento, o restante.
O Liev foi construído com base em software de código aberto (“open source”). Ele será doado para uso do mercado. Mesmo assim, por sair na frente com o produto e serviços adjacentes, a Inmetrics prevê para 2024 um aumento de 15% a 20% sobre sua receita de 2023, quando alcançou R$ 150 milhões, afirma Pablo Cavalcanti, diretor-presidente da companhia. Para 2025, ele estima uma alta de 40% sobre o atual exercício.
Com 700 funcionários, a Inmetrics atua também no Chile, na Colômbia e República Dominicana. Em dois meses, estenderá sua presença ao Canadá, segundo o executivo, ao destacar que 15% da receita provem das operações fora do país.
Esse “middleware”, ou software intermediário para inteligência artificial, fica entre os aplicativos da empresa que o utiliza e o modelo de IA. A partir daí, é possível trocar de modelo a qualquer momento, usar vários deles, sem alterar as aplicações. O Liev pode conectar os diferentes modelos de linguagem de grande escala (LLMs, na sigla em inglês) locais ou externos, mantendo o controle da privacidade de dados, dizem os desenvolvedores.
O software fica na nuvem computacional da empresa. Quem tem o próprio data center pode instalá-lo no seu servidor. “[Com o middleware] Os departamentos de tecnologia podem operar de forma muito mais rápida, sem o débito técnico, jogando tudo [que foi construído antes] fora”, diz Cavalcanti. “Se a empresa leva de um a dois meses para testar um modelo, com o nosso software faz isso em dias.” O fato de não precisar alterar a programação encurta o prazo.
Na primeira fase do projeto, Anderson de Rezende Rocha, professor titular de inteligência artificial na Unicamp desde 2009 e coordenador do Recod.ai, trabalhou com apenas um estudante de pós-doutorado. “Analisamos dados com a Inmetrics e desenvolvemos algoritmos iniciais”, conta o professor. Com os resultados, a parceria evoluiu e se estendeu para 2024 e 2025. A equipe agora terá dois pesquisadores doutores e três alunos.
Para o professor, as parcerias entre universidades e indústrias no mundo aceleram o processo de desenvolvimento e inovação. “A indústria conhece o problema e o que precisa ser feito, e os pesquisadores sabem as técnicas.”
O CEO diz que para essa pesquisa foi testada a maioria dos modelos de IA generativas. Um dos entendimentos é que para as grandes empresas usarem esses algoritmos com segurança é preciso fazer um desacoplamento, separar os modelos das funções administrativas das aplicações. O processo de separação é complexo, diz o executivo, porque envolve controle de acesso, escalabilidade, privacidade de dados, auditoria e custos.
Os modelos de IA generativa não têm padronização – a forma como é feita a interação com o programador. Para interagir com os modelos, esses técnicos usam uma interface de programação de aplicação (API, na sigla em inglês). No caso de usuários independentes, o chatbot (robô) é a interface.
A Unicamp tem dois trabalhos principais com a Inmetrics, um deles é referente a IA generativa. Nesse caso, é preciso entender como usar o poder dos grandes modelos de linguagem para melhorar o relacionamento da empresa com o cliente, diz o professor Rocha.
O segundo trabalho é sobre IA supervisionada. “Queremos entender quando os clientes vêm falando do produto, o que falam via redes sociais da empresa, dos parceiros, no mercado aberto, na Amazon, no Mercado Livre ”, diz o professor Rocha, ao citar alguns canais.
Um dos objetivos com a IA supervisionada é saber rapidamente quando é preciso transferir o consumidor da conversa com o chatbot para um atendimento por humano. As pessoas consideram irritante quando o chatbot fica dando voltas nas opções de resposta automática, ‘enrolando’, sem conseguir resolver a questão nem transferir para um humano.
É preciso ter um atalho para fazer essa transferência quando se identifica que a pessoa já passou pelos passos disponíveis na gravação automática, diz Marcos Medeiros Raimundo, professor doutor do Instituto de Computação da Unicamp. “Tem sistemas que nem têm atendimento por humano e ficam na conversa. Nosso projeto é fazer essa personalização.”
O desenvolvimento do “middleware” garante 50% de participação na propriedade intelectual para a Inmetrics e a Unicamp. Mas como a opção foi pelo “open source” e doação do software, não existe mais propriedade intelectual.
Em dois anos, a Inmetrics espera criar uma fundação composta por empresas sem fins lucrativos. Depois, será formado um comitê para cuidar da evolução do software. Poderá ter assento na fundação qualquer indivíduo ou empresa que queira patrocinar o desenvolvimento. A melhoria do software voltará à comunidade como benefício. A Inmetrics se responsabilizará pelo suporte e curadoria.
“Nenhuma empresa, por maior que seja, consegue superar milhões de pessoas apaixonadas por doar seu tempo e conhecimento para evoluir uma tecnologia”, diz o executivo, ao citar outros casos de “open source” no mercado global, como o sistema operacional Linux.
Se o ganho para a Inmetrics é antecipar-se à concorrência, para a Unicamp, é outro. “O papel da universidade também é a difusão do conhecimento e a formação, e com esse projeto de código aberto conseguimos as duas coisas”, afirma o professor Rocha.
Redação:
Ivone Santana
De São Paulo
Foto:
Gabriel Reis
Valor